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“Os dias estão ficando cada vez mais longos e as noites estão cada vez mais curtas”, descreve o pneumologista Flávio Arbex, que trabalha na linha de frente contra a covid-19 em Araraquara.
Na cidade, a rede pública tem 281 profissionais exclusivamente na linha de frente do atendimento à covid, dos quais 49 são médicos. Na Santa Casa, são mais 20 médicos na unidade respiratória, além de outros 67 profissionais. Profissionais que lutam dia e noite pela vida de seus pacientes e contra seu próprio cansaço.
A luta contra o coronavírus vem ocorrendo desde março de 2020 em Araraquara, mas a rotina dos médicos tem se intensificado ainda mais neste ano, quando em apenas 55 dias de 2021, o número de mortes já ultrapassava de longe, o número de vítimas fatais registrados em 2020.
Se de março a dezembro a cidade registrou 92 mortes, nos primeiros 55 dias de 2021 – 1º de janeiro a 7 de março – 154 pessoas já perderam a vida, em decorrência da doença.
A cidade, que tem medidas restritivas de circulação, enfrenta uma crise hospitalar e já soma 15.519 infectados pelo novo coronavírus.
“Eu tenho a impressão que começou uma avalanche, um aumento do número de casos, do número pacientes internados e do padrão da doença. A doença mudou, ficou agressiva e começamos a internar e intubar pacientes mais jovens”, relata o pneumologista.
Segundo o médico, o aumento foi rápido e avassalador. Segundo ele, a intubação em paciente jovem era feita uma a cada mês, hoje são duas ou três por semana no hospital público. Em seu consultório privado, ele encaminhava pacientes para internação uma vez por semana, atualmente, são de dois a três encaminhamentos por dia.
Se o aumento de internações é causado pela nova variante, ainda não é provado, mas uma coisa é certeza, tamanha demanda tem repercutido física e mentalmente nas equipes de saúde de todos os hospitais e pontos de atendimento da cidade.
“Gerou uma pressão muito grande nos profissionais de saúde. Eu me lembro no começo da pandemia, todo mundo inseguro. Agora foi um atropelamento. A doença mudou, ficou agressiva e mexeu muito com a gente, porque já estávamos cansados. É uma pressão psicológica enorme você intubar um paciente de 35, 40 anos e ele perguntar se vai ver os filhos novamente. Isso aconteceu comigo”, conta Arbex.
SEM DORMIR
“Eu não consigo dormir porque eu fico preocupado em não ter respiradores, de passar por uma situação como Manaus e não ter respiradores para intubar um paciente”, diz o ginecologista e obstetra Antonio Carlos Durante, diretor hospitalar da Unimed.
Durante foi um dos responsáveis por preparar Araraquara para a pandemia e começou a equipar o hospital São Paulo, em fevereiro de 2020, mas, segundo ele, ninguém estava preparado para uma tragédia tão grande com equipamentos.
“A gente dobrou todas as compras de insumos e EPIs por quatro meses e comprou sete respiradores”, conta.
As cirurgias eletivas também foram suspensas mais tarde. “Hoje, nós só estamos operando câncer, fratura, partos e urgências porque nossos leitos de cirurgia clínica se tornaram leitos covid.”
O gripário que foi montado no hospital começou com 10 leitos UTI e 12 leitos de isolamento no térreo. Hoje, a ala covid conta com 98 leitos de UTI e ocupa dois andares do hospital e, mesmo assim, todos os leitos de intubação estão ocupados.
PÂNICO
“É uma doença que causa muito pânico. É todo dia ligando para a família, passando informação, porque a família não tem acesso ao paciente, então isso traz uma pressão psicológica muito alta porque é passar notícia todo dia e nem sempre é notícia boa”, conta o oncologista Luís Henrique de Carvalho.
Para o médico, a pressão não ocorre apenas nas enfermarias e UTIs, mas também nos consultórios. Os médicos receberam uma nova função, a de serem o principal contato entre familiares e pacientes, o que aumentou ainda mais a carga emocional do trabalho.
“Na consulta pós-alta, no meu consultório eu nem quero olhar para a cara do meu paciente porque ele eu conheço. Eu quero é conhecer o acompanhante, aquela pessoa que eu ligava todo dia, que eu sofri junto com essa família, com as mensagens que eu passava todo dia. Geralmente são encontros emocionantes”, conta.
As perdas têm se acumulado nas estatísticas e na mente dos médicos e profissionais de saúde da linha de frente da covid de Araraquara.
“Uma pessoa querida, extremamente jovem, que quando chegou à UTI ainda estava falando da filha recém-nascida de poucas semanas, perdeu a vida. Essas marcas a gente não consegue tirar, a gente não consegue ir para casa e apagar isso e chegar lá no outro dia e trabalhar como se não tivesse acontecido, pelo contrário, essas marcas estão ficando cada vez mais pesadas”, afirma Carvalho.
O médico relata que nos dois últimos meses, essa sensação de peso tem aumentado e tem se associado à ansiedade de saber que mais pessoas ainda irão passar pelos leitos de UTI.
“Parece que a gente não tinha noção de como a covid poderia ser algo desgastante e agora tem. O que a gente vê da equipe é cansaço, o próprio hospital fazendo esforços intensos para aumentar muito a área de internação e UTI, hoje ela é três vezes maior, e o que deixa a gente angustiado é que mesmo assim não dá conta. A gente fica olhando com certa angústia e ela é persistente o tempo todo na unidade intensiva porque não sabemos se damos conta da situação daqueles pacientes que a gente tem lá e tem certeza de que tem gente fora também em grave estado de saúde precisando chegar na unidade, é muito difícil.”
COMBATE
A médica Celina Gail Hoehr estreou no combate à covid junto com a inauguração do hospital de Campanha de Araraquara.
Ela conta que o hospital recebia poucos pacientes, em torno de dez. Na pior época de 2020, em agosto, chegou a uma média de 20 pacientes em enfermaria. Hoje, o local conta com 31 leitos de enfermaria todos preenchidos.
“Antes, a gente trabalhava entre 50% a 60% das vagas e a gente conseguia mandar para UTI quando estabilizava o paciente, agora não tem essa possibilidade”, relata.
Entre 6 de fevereiro e 2 de março, Araraquara não teve as UTIs pública e particular lotadas por apenas dois dias. Em várias noites, foram registradas filas de ambulâncias na porta do hospital de campanha com pacientes esperando para serem internados.
“Causa muita preocupação porque a gente recebe pacientes de várias cidades. A gente tem um centro de regulação e recebe ligações de médicos de outras localidades e, infelizmente, tem que negar vagas porque a gente não tem. Além de sabermos da preocupação dos nossos colegas em locais mais distantes, que vão ficar com paciente grave nas suas unidades sem estrutura, tem também os nossos pacientes mais graves sendo tratados em locais que não deveria até conseguir uma vaga”, afirma.
CUIDADOS
“Eu positivei em junho do ano passado, eu não desenvolvi sintomas, também nunca mais positivei. Em relação a si mesmo gente perde um pouco o medo. Eu trabalho 60 horas semanais só com pessoas positivas, mas eu não perco o medo de contaminar. Meu marido não vem para casa desde dezembro do ano passado, eu sou mãe, tenho uma filha em casa, em função disso acaba diminuindo o toque, nesse sentido eu tenho medo e tento proteger ela, é bem difícil, diz Celina.
A médica defende o trabalho que está sendo realizado na rede pública e ressalta que Araraquara não irá sair dessa situação sem a contribuição da população.
“É uma questão de conscientização também, é bar, shopping todo mundo quer lazer. Está todo mundo cansado de ficar em casa, mas não tem o que fazer, não tem alternativa. Eu não tenho momento de lazer, eu não tenho coragem de sair eu tenho medo de transmitir é uma questão ética minha, eu vejo tanto sofrimento. “Se a gente não diminuir a curva de transmissão, a gente não vai conseguir dar conta. Se realmente tiver isolamento, eu acho que em um mês e meio a gente consegue desafogar, mesmo se tiver mais leitos, falta ainda muita coisa por parte da população, falta responsabilidade”, afirma Celina.
Para Arbex, essa doença é uma tragédia familiar. “É justamente em casa que a pessoa se desprotege, porque está entre os seus e acha que não tem problema e é no dia a dia que a gente vê famílias e famílias contaminadas porque você baixa a guarda com a família”, diz Arbex.
O médico teve a doença no ano passado, durante um procedimento na UTI. Ele acabou contaminando sua esposa e, por sorte, não contaminou o filho de 1 ano e meio.
“O vírus não foi agressivo em mim ou na minha esposa e meu filho não pegou, mas a fica toda a preocupação porque a gente vê o que a gente vê, a gente sabe o que pode acontecer, foi uma pressão alta psicológica, mas todos nós passamos bem por isso”, finaliza.
FONTE: A CIDADE ON ARARAQUARA